sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Leminskiando

parar de escrever
bilhetes de felicitações
como se eu fosse camões
e as ilíadas dos meus dias
fossem lusíadas
rosas, vieiras, sermões

(Paulo Leminski, Caprichos & Relaxos)

parar de sofrer
tanto por te amares
como se eu fosse álvares
e as liras dos meus dias
fossem cítaras
embalando tristezas tumulares

(Jac, 19/10/2012)

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

O amor acaba


O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unhas;

na acidez da aurora tropical, depois duma noite votada à alegria póstuma, que não veio; e acaba o amor no desenlace das mãos no cinema, como tentáculos saciados, e elas se movimentam no escuro como dois polvos de solidão;

como se as mãos soubessem antes que o amor tinha acabado; na insônia dos braços luminosos do relógio; e acaba o amor nas sorveterias diante do colorido iceberg, entre frisos de alumínio e espelhos monótonos; e no olhar do cavaleiro errante que passou pela pensão;

às vezes acaba o amor nos braços torturados de Jesus, filho crucificado de todas as mulheres; mecanicamente, no elevador, como se lhe faltasse energia; no andar diferente da irmã dentro de casa o amor pode acabar; na epifania da pretensão ridícula dos bigodes; nas ligas, nas cintas, nos brincos e nas silabadas femininas;

quando a alma se habitua às províncias empoeiradas da Ásia, onde o amor pode ser outra coisa, o amor pode acabar; na compulsão da simplicidade simplesmente; no sábado, depois de três goles mornos de gim à beira da piscina;

no filho tantas vezes semeado, às vezes vingado por alguns dias, mas que não floresceu, abrindo parágrafos de ódio inexplicável entre o pólen e o gineceu de duas flores; em apartamentos refrigerados, atapetados, aturdidos de delicadezas, onde há mais encanto que desejo; e o amor acaba na poeira que vertem os crepúsculos, caindo imperceptível no beijo de ir e vir; em salas esmaltadas com sangue, suor e desespero;

nos roteiros do tédio para o tédio, na barca, no trem, no ônibus, ida e volta de nada para nada; em cavernas de sala e quarto conjugados o amor se eriça e acaba;
no inferno o amor não começa; na usura o amor se dissolve; em Brasília o amor pode virar pó; no Rio, frivolidade; em Belo Horizonte, remorso; em São Paulo, dinheiro; uma carta que chegou depois, o amor acaba;

uma carta que chegou antes, e o amor acaba; na descontrolada fantasia da libido; às vezes acaba na mesma música que começou, com o mesmo drinque, diante dos mesmos cisnes; e muitas vezes acaba em ouro e diamante, dispersado entre astros;

e acaba nas encruzilhadas de Paris, Londres, Nova Iorque; no coração que se dilata e quebra, e o médico sentencia imprestável para o amor; e acaba no longo périplo, tocando em todos os portos, até se desfazer em mares gelados; e acaba depois que se viu a bruma que veste o mundo;
na janela que se abre, na janela que se fecha; às vezes não acaba e é simplesmente esquecido como um espelho de bolsa, que continua reverberando sem razão até que alguém, humilde, o carregue consigo;

às vezes o amor acaba como se fora melhor nunca ter existido; mas pode acabar com doçura e esperança; uma palavra, muda ou articulada, e acaba o amor; na verdade; o álcool; de manhã, de tarde, de noite; na floração excessiva da primavera; no abuso do verão; na dissonância do outono; no conforto do inverno;

em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba.

(O amor acaba, crônica de Paulo Mendes de Campos)

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Saramaguiando

"Porque, enfim, podemos fugir de tudo, não de nós próprios."

(Memorial do Convento, José Saramago, p.68)

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Pausa



Pausa.

Espaço necessário entre o lá e o aqui.
Entre o passado e o presente.
Entre o eu e o mim.
Entre o poço e o fosso.
Entre o eu e o nós.

Pausa.

Fim da pausa.
Reinicio da causa.

[Londrina, 10/10/2012]

Entre Minas, São Paulo e Londrina

[Nantes, Beirut]


Enquanto toca Beirut vejo a metrópole se perdendo lá embaixo. Gosto dessa sensação de vê-la de cima, nesse horário em que o sol está se pondo e as luzes começam a acender. Há as luzes dos carros cruzando rios, pontes, viadutos. Há as luzes amarelas, brancas, opacas que pipocam nas janelas do prédios. E então a fumaça, a poluição e as nuvens vão formando um escudo entre minha visão e o que já quase não vejo.  E já não vejo mais cidade alguma. E percebo que, como esse escudo, há um embaçamento em minha vida. Como a solidão dentro de mim, nesse fim de sábado de viagem mineira e uma saudade não sei exatamente do quê.

[ Sábado em trânsito 06/10/2012]