terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Fauno Incauto

[Ilustração de George Barbier mostrando Nijinsky como fauno, dançando o balé L'après-midi d'un faune] 


Fauno incauto
que atravessas, sorrateiramente,
a porta da noite escura

em passos lentos
com beijos sedentos
toca a doce boca
da flauta de pã

Fauno incauto
de incerto destino
que desatina
meu juízo

em braços longos
com abraços mornos
toca essa alma

Fauno incauto 
que bailas
na floresta escura
da vida

em doces toques
com suspiros em frenesi 
ri de si mesmo
em ânsia pagã

Fauno incauto
de grandes cílios
que encobrem
o meu mundo

em um piscar 
de delicadeza profunda
que abre a manhã.

[Jac. 06/12/12]

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Mudança

Partir, ficar
as vezes que fui, fiquei

Quintaneando

Epílogo

Não, o melhor é não falares, não explicares coisa alguma. Tudo agora está suspenso. Nada aguenta mais nada. E sabe Deus o que é que desencadeia as catástrofes, o que é que derruba um castelo de cristal! Não se sabe...Umas vezes passa uma avalanche e não morre uma mosca...Outras vezes senta uma mosca e desaba uma cidade. 

[Mário sempre Quintana]

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Leminskiando

parar de escrever
bilhetes de felicitações
como se eu fosse camões
e as ilíadas dos meus dias
fossem lusíadas
rosas, vieiras, sermões

(Paulo Leminski, Caprichos & Relaxos)

parar de sofrer
tanto por te amares
como se eu fosse álvares
e as liras dos meus dias
fossem cítaras
embalando tristezas tumulares

(Jac, 19/10/2012)

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

O amor acaba


O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unhas;

na acidez da aurora tropical, depois duma noite votada à alegria póstuma, que não veio; e acaba o amor no desenlace das mãos no cinema, como tentáculos saciados, e elas se movimentam no escuro como dois polvos de solidão;

como se as mãos soubessem antes que o amor tinha acabado; na insônia dos braços luminosos do relógio; e acaba o amor nas sorveterias diante do colorido iceberg, entre frisos de alumínio e espelhos monótonos; e no olhar do cavaleiro errante que passou pela pensão;

às vezes acaba o amor nos braços torturados de Jesus, filho crucificado de todas as mulheres; mecanicamente, no elevador, como se lhe faltasse energia; no andar diferente da irmã dentro de casa o amor pode acabar; na epifania da pretensão ridícula dos bigodes; nas ligas, nas cintas, nos brincos e nas silabadas femininas;

quando a alma se habitua às províncias empoeiradas da Ásia, onde o amor pode ser outra coisa, o amor pode acabar; na compulsão da simplicidade simplesmente; no sábado, depois de três goles mornos de gim à beira da piscina;

no filho tantas vezes semeado, às vezes vingado por alguns dias, mas que não floresceu, abrindo parágrafos de ódio inexplicável entre o pólen e o gineceu de duas flores; em apartamentos refrigerados, atapetados, aturdidos de delicadezas, onde há mais encanto que desejo; e o amor acaba na poeira que vertem os crepúsculos, caindo imperceptível no beijo de ir e vir; em salas esmaltadas com sangue, suor e desespero;

nos roteiros do tédio para o tédio, na barca, no trem, no ônibus, ida e volta de nada para nada; em cavernas de sala e quarto conjugados o amor se eriça e acaba;
no inferno o amor não começa; na usura o amor se dissolve; em Brasília o amor pode virar pó; no Rio, frivolidade; em Belo Horizonte, remorso; em São Paulo, dinheiro; uma carta que chegou depois, o amor acaba;

uma carta que chegou antes, e o amor acaba; na descontrolada fantasia da libido; às vezes acaba na mesma música que começou, com o mesmo drinque, diante dos mesmos cisnes; e muitas vezes acaba em ouro e diamante, dispersado entre astros;

e acaba nas encruzilhadas de Paris, Londres, Nova Iorque; no coração que se dilata e quebra, e o médico sentencia imprestável para o amor; e acaba no longo périplo, tocando em todos os portos, até se desfazer em mares gelados; e acaba depois que se viu a bruma que veste o mundo;
na janela que se abre, na janela que se fecha; às vezes não acaba e é simplesmente esquecido como um espelho de bolsa, que continua reverberando sem razão até que alguém, humilde, o carregue consigo;

às vezes o amor acaba como se fora melhor nunca ter existido; mas pode acabar com doçura e esperança; uma palavra, muda ou articulada, e acaba o amor; na verdade; o álcool; de manhã, de tarde, de noite; na floração excessiva da primavera; no abuso do verão; na dissonância do outono; no conforto do inverno;

em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba.

(O amor acaba, crônica de Paulo Mendes de Campos)

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Saramaguiando

"Porque, enfim, podemos fugir de tudo, não de nós próprios."

(Memorial do Convento, José Saramago, p.68)

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Pausa



Pausa.

Espaço necessário entre o lá e o aqui.
Entre o passado e o presente.
Entre o eu e o mim.
Entre o poço e o fosso.
Entre o eu e o nós.

Pausa.

Fim da pausa.
Reinicio da causa.

[Londrina, 10/10/2012]

Entre Minas, São Paulo e Londrina

[Nantes, Beirut]


Enquanto toca Beirut vejo a metrópole se perdendo lá embaixo. Gosto dessa sensação de vê-la de cima, nesse horário em que o sol está se pondo e as luzes começam a acender. Há as luzes dos carros cruzando rios, pontes, viadutos. Há as luzes amarelas, brancas, opacas que pipocam nas janelas do prédios. E então a fumaça, a poluição e as nuvens vão formando um escudo entre minha visão e o que já quase não vejo.  E já não vejo mais cidade alguma. E percebo que, como esse escudo, há um embaçamento em minha vida. Como a solidão dentro de mim, nesse fim de sábado de viagem mineira e uma saudade não sei exatamente do quê.

[ Sábado em trânsito 06/10/2012]

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Me acorde quando setembro acabar



[Wake me up when september ends, Green Day]



Setembro: ipês amarelos perdendo suas flores, amoreiras carregadas de pura rouxidão.
Atravesso setembro entre colinas, entre morros, entre altos e baixos. Em pura solidão.
Setembro: estradas se perdendo no horizonte, pó sobre os móveis da casa
atravesso setembro entre os escombros, entre o sair e o pular do quinto andar. Sem asas.

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Travessia




Travessia

(Milton Nascimento e Fernando Brant)

Quando você foi embora fez-se noite em meu viver
Forte eu sou mas não tem jeito, hoje eu tenho que chorar
Minha casa não é minha, e nem é meu este lugar
Estou só e não resisto, muito tenho prá falar

Solto a voz nas estradas, já não quero parar
Meu caminho é de pedras, como posso sonhar
Sonho feito de brisa, vento vem terminar
Vou fechar o meu canto, vou querer me matar

Vou seguindo pela vida me esquecendo de você
Eu não quero mais a morte, tenho muito que viver
Vou querer amar de novo e se não der não vou sofrer
Já não sonho, hoje faço com meu braço o meu viver

Solto a voz nas estradas, já não quero parar
Meu caminho é de pedras, como posso sonhar
Sonho feito de brisa, vento vem terminar
Vou fechar o meu canto, vou querer me matar

Vou por aí...não vou por aí

[Lisboa, Maio/2012]

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Sobre o regresso

[Fragmento poético de Antônio Gedeão]



De volta à casa não mais minha ou nossa. De volta a uma vida estranha em que me sinto uma intrusa a penetrar corredores arruinados por mim mesma e pelos outros transeuntes desses meses que se arrastaram. Volto aos pedaços e não há cola que consiga aderir os fragmentos e me faça me sentir melhor ou, ao menos, ter a ilusão de o estar. Volto para juntar esses pedaços e tentar desfazer o nó que eu mesma atei em minha vida. Volto para tirar o pó da sala, dos livros, dos cd's e transportá-los, possivelmente, para um lugar que sequer imaginei, sequer sonhei para mim. Volto para tentar ser o que não fui, para tentar ser eu-mesma, para tentar não achar estranho o estranho com que me deparo. Volto para buscar ser feliz e, também, fazer alguém feliz. Volto para tentar não ser mais um coração vazio e solitário que teve a felicidade, a mais bela flor do campo dos amantes, nas mãos e não soube o que fazer com ela. Volto de mãos vazias e a mala cheia de lembranças e memórias e lugares, mas em nenhum deles há um rosto conhecido e amigo que revele a eternidade, apenas a efemeridade do trânsito, das coisas e das relações. Volto porque busco um lar. O que tive já não há. Resta, agora, desatar os nós dos sapatos, abrir os botões da camisa, depositar os óculos no criado-mudo e, com os olhos embaçados de tristeza, lágrimas e dor, com a garganta sufocando o grito que quer sair e não encontra forças, com os ombros caídos e fatigados do peso do mundo, recomeçar a vida. Por mais que doa não enxergar a beleza dela. 

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Feeling good


(Nina Simone, Feeling Good)

"And this old world is a new world
And a bold world
For me"

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

O gato, o sapato e o (ph)ato



Cato
um gato
no asfalto

meto
no sapato

o danado
pensa que
pelo facto
d'eu estar
de fato
pode saltar
do sapato
para o
bolso do
fato

Que disparato!

Não sou
um pato

E o meu fardo
(na vida) já
é bem pesado

Dou-lhe o sapato
e leva-me ainda o fato?

Só um gato
para me fazer
de pato e
sapato

[Porto, 23/08/2012]

Agora

"Agora que agora é nunca
Agora posso recuar
Agora sinto minha tumba
Agora o peito a retumbar"

(Arnaldo Antunes, do Cd Tudo ao mesmo tempo Agora, Titãs, 1991)



[Maria Bethânia, Debaixo d'água/Agora, DVD Dentro do mar tem rio]

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Se



(Capela dos ossos - Évora - Julho/2012]

se eu morresse aqui, nesse momento, como seria? quem descobriria meu corpo putrefato? penso que já morri em pouco-muito aqui. meu cadáver continuará seguindo, sem rumo certo ou definido. vagando em busca de algo que já não existe mais. existiu um dia? ou preparei meu cadáver para a morte certa?

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

É bom que você saiba que (por Maria de Queiroz)





[Sangue Latino - Ney Matogrosso]


eu nunca fui uma moça bem-comportada. pudera, nunca tive vocação pra alegria tímida, pra paixão sem orgasmos múltiplos ou pro amor mal resolvido sem soluços. eu quero da vida o que ela tem de cru e de belo. não estou aqui para que gostem de mim. estou aqui para aprender a gostar de cada detalhe que tenho. e pra seduzir somente o que me acrescenta. adoro a poesia e gosto de descascá-la até a fratura exposta da palavra. a palavra é meu inferno e minha paz. sou dramática, intensa, transitória e tenho uma alegria em mim que me deixa exausta. eu sei sorrir com os olhos e gargalhar com o corpo todo. sei chorar toda encolhida abraçando as pernas. por isso, não me venha com meios-termos, com mais ou menos ou qualquer coisa. venha a mim com corpo, alma, vísceras, tripas e falta de ar...eu acredito é em suspiros, mãos massageando o peito ofegante de saudades intermináveis, em alegrias explosivas, em olhares faiscantes, em sorrisos com olhos, em abraços que trazem pra vida da gente. acredito em coisas sinceramente compartilhadas. em gente que fala tocando no outro, de alguma forma, no toque mesmo, na voz ou no conteúdo. eu acredito em profundidades. e tenho medo de altura, mas não evito meus abismos. são eles que me dão a dimensão do que sou.


domingo, 19 de agosto de 2012

Talvez seja bom que você saiba [Eduardo Baszczyn]

[Leonard Cohen - Bird on the wire]



eu: coleciono rancores. desejo coisas ruins. cuspo na maioria dos pratos que já mataram a minha fome. gosto da inveja. da cobiça. de planos mirabolantes para destruir quem precisa ser derrubado. as peças inúteis que obstruem caminhos no tabuleiro onde sobrevivo. eu: acho o amargo melhor que o doce. a vingança mais sábia do que o perdão. o olho por olho mais justo do que a inocência ridícula da compaixão. eu falo por trás esquentando orelhas. beijo faces indigestas com a doçura de judas. escondo raiva através de silêncios. ódio debaixo de sorrisos. as facas afiadas nas mãos para trás. há anos, envio buquês que escondem plantas carnívoras. cartas com artefatos explosivos. flores de mentira que espirram água no meio das caras. gosto da umidade das cavernas. do escuro dos quartos fechados. do silêncio da ruínas. do vazio das gavetas mofadas. eu: preciso do sossego do meu ninho. das outras cobras perigosas. eu: se for cutucado, aviso: não há antídoto para meu tipo de veneno.

do blog http://coisasdagaveta.blogspot.pt/

sábado, 18 de agosto de 2012

A saudade...


"ainda que eu não tenha paragens. ainda que o trânsito de lá para cá me atravesse. ainda que não haja um ponto zero no meu mapa. ainda que a saudade brote, feroz, canina, mortífera. ainda que ela venha e volte, alguns dias acomodada, silente. em outros, como hoje, voraz, devoradora. fotogramas acendendo e apagando na tela vazia: um amanhecer enevoado de Inácio Martins, o pôr-do-sol mais lindo da aldeia em Guarapuava, o mar dividido entre as pedras e as casas empoleiradas em Florianópolis, as fuligens negras cobrindo os azulejos em Jacarezinho, a chuva despudorada, molhanãomolha, e cheirosa de Londrina, o gosto da Augusta em São Paulo..."A saudade é prego parafuso/quanto mais aperta tanto mais difícil arrancar/ A saudade é Brigitte Bardot/Acenando com a mão/num filme muito antigo"

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

As mãos de uma mulher

as mãos de uma mulher
são como bailarinas
dançam, bailam, irrompem o ar
delicadamente finas

as mãos de uma mulher
são borboletas voltejantes
flanam, flutuam, pousam sobre o ar
sorrateiramente provocantes

as mãos de uma mulher
são as patas de uma aranha
que se movimentam lentamente
sobre uma teia estranha

as mãos de uma mulher
são frágeis colibris
obcecadas voam celeramente
nas batentes das janelas que abris

as mãos de uma mulher
são cântaros fundos
cheios de grãos de areia
escorrendo entre meus dedos fecundos

as mãos de uma mulher
são a batuta que rege a orquestra
desordenada e melancólica
da vida que não me resta.

[Lisboa 01/08/2012]

O banco



Sentam-se.
Deitam-se.
Namoram-se.

E,
se o banco
se cansasse
E fosse embora
Vermelho de raiva?
Azul de ódio?
Amarelo de medo?

Não.

O banco
não foge
porque gosta
das ancas das mulheres
poisadas
em seu colo.

[Évora, 30/07/12]

segunda-feira, 23 de abril de 2012

quem precisa de molduras? ou noves, fora zero



  1. 1.

    Uma joaninha laranja de pintas pretas atravessa a folha preenchida com uma canção pop irlandesa. Avança a pasta amarelo limão e um jogo de cores se faz. Um jogo de cores meio brega, meio ridículo, mas que satisfaz. Meio tonta ela zanza de um lado a outro da pasta, subindo e descendo pelo elástico, que também zigue-zagueia entre o branco e o preto que o tinge.

    2.      

    Uma borboleta preta e vermelha atravessa o tráfego quente da rua ensolarada. Perdida entre as árvores que povoam a casa da esquina tenta alçar um vôo que cruze de um lado ao outro da rua. Debate-se um pouco, meio tonta, meio vaga, suicida-se no poste em frente ao verde prédio dos perdidos.

    3.
           
    Um pássaro de peito amarelo se equilibra numa fina folha de capim-limão. O seu canto oculto no rock pesado da britadeira não é ouvido pelos passantes. Para que sinfonia natural se o dia insiste em nascer em ópera-rock?!

    4.       

    Um grilo verde invade a sala de estar. Pousado na limpidez da parede branca ousa se movimentar. Uma pata preta o estonteia. Perdendo suas asas, sem equilíbrio e cegado pela claridade do sol, suicida-se entrando na boca negra do gato.
    5.       

    Uma mariposa baila em torno da lâmpada fluorescente. Encontra um vão em que pode penetrar e deixar-se entrever na luminosidade incandescente. Dentro do espaço aconchegante e sedutor dos falos brancos deixa-se repousar. A quentura macia queima seus pelinhos. O prazer é um instante de morte.

    6.       

    Uma lagartixa atravessa o canto sul da parede. Na exata divisão pilastra e teto. Na textura laranja ela tenta esconder sua gélida brancura. Mas a menina consegue encontrá-la. E numa espera tranqüila segue seus passos até o canto da janela. Ali se precipita e consegue capturá-la. Escondida entre as pequeninas palmas descobre-se um crocodilo mísero e covarde.

    7.       

    Uma barata vermelha zigue-zagueia entre os pés do sofá. Sem maçã incrustada nas costas esconde-se no pé direito. As antenas movimentam-se rapidamente, numa tentativa de captar, rastrear o melhor trajeto. Encurralada pela luz do dia, sente as cócegas da vassoura em suas asas duras. Afoga-se na gosma branca que a precisão do chinelo não lhe deu tempo de se  proteger.

    8.       

     Uma formiga tanajura rebola entre a rua e o muro do cemitério. Não se vê muita coisa além da folha verde que se equilibra no seu rebolado. Sem saber se desviava da poça d’água surgida com a chuva da noite ou se esperava socorro e compreensão, tenta fazer um bote da folha. A folha afunda com o peso daquela bunda sensual.

    9.       

    Um rato branco atravessa o buraco da parede imunda. Os ratos são descendentes de deuses. Cultuados, abençoados e alimentados não dividem seu Olimpo com os bárbaros dos esgotos. Gordos e opulentos respeitam os ratos albinos que são descendentes diretos da deusa-mãe. Entre as limpas passagens do palácio dividem seu leite com os fiéis. Ratos do ocidente vão para a ratoeira, ratos da Índia vão gordos para qualquer altar.

quarta-feira, 18 de abril de 2012

Garoa



Como num prelúdio de Rachmaninov
Ela baila na moldura da janela
O quebra-cabeça de pedras ao fundo
semi-coberto pela trepadeira
sequer sente-se úmido

A garoa vai e vem
Não pinga no telhado porque aqui não há telhado
Apenas no poema de Quintana
a chuva e o anjo estão a pirulinlar
E, aqui, eu pareço que vou sofrer

A garoa vem e vai
É fina, é leve, é desmedida
É fria, é pluma, é rápida
É triste

Fina e minúscula como a neve em Edinburgo
a cobrir meu coração vazio.

Leve e sorrateira como o gato imaginário
que, placidamente, se deita sobre o livro aberto
acariciando com suas unhas afiadas as palavras dispersas.

Desmedida e vadia como o trançar de pernas
do ébrio voltando para casa ao amanhecer,
os olhos doendo pelo excesso de claridade,
a malemolência de pernas a passos rápidos.

Fria e voraz tal o puma das savanas
silencioso como a noite
prostrado no galho grosso da árvore
a esperar a presa para dar o bote infalível

Como uma pluma, a garoa desce sobre o dia triste
enegrece a alma, dando-lhe tons sépia de tédio
e melancolia

como uma pluma, a garoa desce flutuando ao som
de Raphsody on A theme of Paganini
embaçando memórias perdidas no fundo do baú

Rápida e inquieta como uma alma perdida
a garoa vai e vem
de minuto a minuto
de segundo a segundo
sem permitir que as memórias
se sentem e fiquem para o almoço.

terça-feira, 10 de abril de 2012

Balada da praia dos cães

O mundo é um grandecíssimo cadáver com moscas de vaivém para abrilhantar.

[José Cardoso Pires, Balada da Praia dos Cães, 1995, p.34]


[Capela de Ossos em Évora/PT]

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Diário de Dublin, Edinburgo e Glasgow

De Porto para Irlanda e Escócia:

Meu companheiro de viagem por Irlanda e Escócia foi Al Berto. Em O anjo mudo (1993), também um livro de viajante, acabei por encontrar mais que um companheiro. No primeiro texto Aprendiz de Viajante, o poeta diz ter lido em algum lugar que 'viajar cura a melancolia'. Coloco-me, então, nesse lugar de viajante e penso comigo o que viajar me significa. Se para Al Berto, viajar talvez servisse para 'curar a melancolia', penso que tanto para ele quanto para mim, não sei se curou. Permaneci melancólica durante esses oito dias. Penso que o clima irlandês, a neve caindo em Edinburgo e o vazio em Glasgow contribuíram para que o sentimento da melancolia permanecesse.

[Encontrando Joyce no Saint Stephen's Green - Dublin/Irlanda]

O frio da Irlanda, irmanado aos encontros com James Joyce e Oscar Wilde reativaram memórias literárias e pessoais. Refazer alguns passos de Leopold Bloom e Stephen Dedalus permitiram criar minha própria Odisséia. É indescritível pensar o quanto ficção e realidade se confundem quando penetramos esses espaços narrados e descritos nos romances. Minha surpresa ficou por conta da Ponte (Dublin é cheia delas) de James Joyce. Uma ponte, remodelada em 2003 por Santiago Calatrava, toda moderninha arquitetonicamente, contrastando, inclusive, com todo o espaço circundante. Já Oscar Wilde, continua em sua pose abusada no Oscar Wilde Memorial, na Merrion Square. Tanto Joyce quanto Wilde me trouxeram memórias adolescentes  e recentes. Mas memórias felizes e não melancólicas.

[Ponte James Joyce - Dublin/Irlanda]

[Encontrando o lânguido Oscar Wilde, na Merrion Square - Dublin/Irlanda]

A neve caindo no caminho do Castelo de Edinburgo lembrou minha cidade natal, quando, ainda criança vi a neve cair, pequena, macia, leve e efêmera sobre mim, enquanto voltava de uma aula de catecismo. A diferença, depois de tantos anos, é que a neve cresceu. Os flocos eram maiores, a quantidade e a intensidade também...mas não deixou de ser pequenas nuvenzinhas a cobrirem o casaco viajante de Jô.
Sim, minha grande salvação nesse frio gélido europeu foi o casaco negro que Jojô me emprestou. Com ele atravessei rios, montanhas e castelos. Foi minha armadura, diga-se de passagem, nesse espaço de cavaleiros, reis e vitórias.

[O Castelo de Edinburgo - Edinburgo/Escócia]
O vazio de Glasgow foi preenchido pelo belíssimo passeio no Jardim Botânico. A ida até lá foi, por si só, interessante. O metro em Glasgow é antiguíssimo, são trens pequenos que parecem o início de tudo. E como tremem. O que ficou dessa cidade escocesa foi que, em dois dias, andamos de metrô, de ônibus e de trem, para confirmar, segundo os folhetos turísticos, que a Escócia possui o melhor sistema de transporte da Europa. Também ficou a tristeza de ter perambulado pouco pela cidade. O cansaço de fim de viagem não permite essas deambulações. O que foi uma pena, pois um passeio pelo mapa da cidade (depois que conseguimos um mapa decente), revela uma cidade encantadora, cheia de charme e de coisas a serem descobertas. Infelizmente, o tempo urge e precisávamos chegar a Prestwick para pegar o avião e voltar para a casa não casa: Porto.

[Jardim Botânico - Glasgow/Escócia]
Ao fim e ao cabo, ficou-me a frase de Al Berto - "Sou um viajante que coleciona dúvidas, ao mesmo tempo que deita fora as poucas certezas que tinha", meu companheiro andante.

quinta-feira, 29 de março de 2012

Leminski aqui, Leminski lá

Essa vida, de eremita
é, às vezes, bem vazia.
Às vezes, tem visita.
Às vezes, apenas esfria.

[Paulo Leminski, original inédito]


Leminskianas I

Quem sabe um dia,
o que eu rabisco,
não seja um mero risco,
nem dose de hipocondria.
Mas, quem sabe, um cisco,
ao raiar do dia,
no olho dessa guria
por quem eu pisco.


Leminskianas II

Poeto por poetar
Escrevo por escrever
Se já dizia o polaco louco
tem que ter por quê?

De Polaco e louco
todos têm um pouco
Se ouso escrever sem porque
talvez seja em sua homenagê

E, se menage à trois não há
Melhor é poetar
pois aportar no que não há
nos possibilita naufragar.

quarta-feira, 28 de março de 2012

Gatinha Manhosa II

Era uma vez, uma gatinha
toda lânguida e dengosinha.

Ela me sorriu manhosamente
e conquistou meu corpo e mente.

Não consegui resistir aos seus encantos
que retiraram de mim meus desencantos

E agora, que estou mais que feliz,
só ouço meu coração que diz:

- Não sei se ficou ou se saio,
só sei que com você quero dividir o meu balaio.

Amigos Mortos

Hoje lembrei-me de meus amigos mortos
Passou por mim uma sensação de não mais
Um perfume que evaporou do frasco
Um livro cuja leitura ficou inacabada
Uma fruta pela metade que apodreceu na geladeira
Uma carta que chegou depois da hora
Um chá que esfriou na xícara preferida
Um filme cuja exibição restou a nenhum espectador
Uma sopa na qual se formou uma película de gordura
Um poema que restou incompleto no fundo da gaveta naftalítica

Hoje lembrei-me de meus amigos mortos
Num vagão do metrô lotado
Na passarela vazia
No restaurante cheio
Na rua sombria
No ponto de ônibus lotado
No apartamento úmido
Em minha vida tímida

Hoje lembrei-me de meus amigos mortos
Nos solitários túmulos que guardam sua casa arruinada
Nas flores que encobrem suas tristes lápides
Nas cinzas carregadas pelo vento revolto
Nas ervas daninhas que acalentam as paredes de seus mausoléus
Na névoa fria que acoberta suas tumbas

Hoje lembrei-me de meus amigos mortos
Hoje lembrei-me de meus amigos mortos
Hoje lembrei-me de meus amigos...

Soneto da Gatinha Arisca e do Sr. Peixe

Era uma vez, uma Gatinha Arisca
de olhar que pouco pisca.
Dessas, metida a boa bisca
que não sai da linha, mas, às vezes, se arrisca.

Era uma vez, um perdido Peixinho
de olhos tristonhos e muito sozinho.
Desses, metido a fazer charminho
que não é triste só, às vezes, esboça um sorrisinho.

Um dia, o Sr. Peixe foi fisgado
sem saber de onde vinha a isca
sem saber se estava em sonho ou nado

Ele não resistiu ao olhar que  trisca
acabou um peixinho vitimado
pelo amor dessa doce Gatinha Arisca.

sexta-feira, 23 de março de 2012

Suicídio à moda do Porto





Um corpo cai e não é Hitchcock
Um corpo naufraga e não é Defoe
Um corpo em sua via crucis e não é Lispector

O corpo cai
O corpo não afunda
O corpo se vai

Segue o rio
Segue o fio
Segue à frente do navio
que desvia

E a velha portuguesa
grita
E o grito dura o tempo
que o corpo toca a leve
camada fria do rio
Ela se desespera
A velha portuguesa seca as mãos úmidas
em seu avental verde e amarfanhado

Não há corpo da marinha
Não há corpo de bombeiros
Não há corpo policial
Há, apenas, um corpo
a atravessar o Douro
a penetrar o Douro
a invadir o Douro
Na hora dourada do poente

Um grito não salva
uma alma que se solta

Um corpo solto
do meio da ponte
que os ferros de Eiffel sustentam

Um corpo não sustenta uma
alma
que imagina ter
asas