quinta-feira, 29 de março de 2012

Leminski aqui, Leminski lá

Essa vida, de eremita
é, às vezes, bem vazia.
Às vezes, tem visita.
Às vezes, apenas esfria.

[Paulo Leminski, original inédito]


Leminskianas I

Quem sabe um dia,
o que eu rabisco,
não seja um mero risco,
nem dose de hipocondria.
Mas, quem sabe, um cisco,
ao raiar do dia,
no olho dessa guria
por quem eu pisco.


Leminskianas II

Poeto por poetar
Escrevo por escrever
Se já dizia o polaco louco
tem que ter por quê?

De Polaco e louco
todos têm um pouco
Se ouso escrever sem porque
talvez seja em sua homenagê

E, se menage à trois não há
Melhor é poetar
pois aportar no que não há
nos possibilita naufragar.

quarta-feira, 28 de março de 2012

Gatinha Manhosa II

Era uma vez, uma gatinha
toda lânguida e dengosinha.

Ela me sorriu manhosamente
e conquistou meu corpo e mente.

Não consegui resistir aos seus encantos
que retiraram de mim meus desencantos

E agora, que estou mais que feliz,
só ouço meu coração que diz:

- Não sei se ficou ou se saio,
só sei que com você quero dividir o meu balaio.

Amigos Mortos

Hoje lembrei-me de meus amigos mortos
Passou por mim uma sensação de não mais
Um perfume que evaporou do frasco
Um livro cuja leitura ficou inacabada
Uma fruta pela metade que apodreceu na geladeira
Uma carta que chegou depois da hora
Um chá que esfriou na xícara preferida
Um filme cuja exibição restou a nenhum espectador
Uma sopa na qual se formou uma película de gordura
Um poema que restou incompleto no fundo da gaveta naftalítica

Hoje lembrei-me de meus amigos mortos
Num vagão do metrô lotado
Na passarela vazia
No restaurante cheio
Na rua sombria
No ponto de ônibus lotado
No apartamento úmido
Em minha vida tímida

Hoje lembrei-me de meus amigos mortos
Nos solitários túmulos que guardam sua casa arruinada
Nas flores que encobrem suas tristes lápides
Nas cinzas carregadas pelo vento revolto
Nas ervas daninhas que acalentam as paredes de seus mausoléus
Na névoa fria que acoberta suas tumbas

Hoje lembrei-me de meus amigos mortos
Hoje lembrei-me de meus amigos mortos
Hoje lembrei-me de meus amigos...

Soneto da Gatinha Arisca e do Sr. Peixe

Era uma vez, uma Gatinha Arisca
de olhar que pouco pisca.
Dessas, metida a boa bisca
que não sai da linha, mas, às vezes, se arrisca.

Era uma vez, um perdido Peixinho
de olhos tristonhos e muito sozinho.
Desses, metido a fazer charminho
que não é triste só, às vezes, esboça um sorrisinho.

Um dia, o Sr. Peixe foi fisgado
sem saber de onde vinha a isca
sem saber se estava em sonho ou nado

Ele não resistiu ao olhar que  trisca
acabou um peixinho vitimado
pelo amor dessa doce Gatinha Arisca.

sexta-feira, 23 de março de 2012

Suicídio à moda do Porto





Um corpo cai e não é Hitchcock
Um corpo naufraga e não é Defoe
Um corpo em sua via crucis e não é Lispector

O corpo cai
O corpo não afunda
O corpo se vai

Segue o rio
Segue o fio
Segue à frente do navio
que desvia

E a velha portuguesa
grita
E o grito dura o tempo
que o corpo toca a leve
camada fria do rio
Ela se desespera
A velha portuguesa seca as mãos úmidas
em seu avental verde e amarfanhado

Não há corpo da marinha
Não há corpo de bombeiros
Não há corpo policial
Há, apenas, um corpo
a atravessar o Douro
a penetrar o Douro
a invadir o Douro
Na hora dourada do poente

Um grito não salva
uma alma que se solta

Um corpo solto
do meio da ponte
que os ferros de Eiffel sustentam

Um corpo não sustenta uma
alma
que imagina ter
asas